Minha postagem que fez mais sucesso neste blog foi o diário de um dia de curso na EAOF. Hoje estou escrevendo o diário de um dia de serviço, lembrando que, ao contrário dos dias de curso, os dias de serviço variam muito de caso para caso.
DIÁRIO DE UM DIA DE SERVIÇO
Saí de casa às 05h00min esperando chegar antes da 08h30min em São Paulo para reunião de Chefia marcada no aeroporto de Congonhas, onde eu representaria o Campo de Marte. A rodovia Dutra estava escura, com neblina e muitos caminhões. Eu pensei: "tanta gente trabalhando a essa hora da manhã". Eu ouvia o rádio do carro, que dava informes sobre o tempo (frio, muito frio) e sobre o trânsito. Escutei aquela frase "bom dia gente" do Eli Lopes, e pensei "Esse cara ainda tá vivo?". Ando em São Paulo faz 25 anos e ainda me confundo com aquele emaranhado de pistas laterais, pistas centrais e pistas marginais da Marginal Tietê. Meio sem querer fui parar na Av. Cruzeiro do Sul, ao invés da Av. Tiradentes. Cheguei cedo a Congonhas, às 06h40min. Achei vaga para estacionar nos quarteirões ao redor, coisa considerada impossível. Não foi ruim chegar cedo. Deu para ler, arrumar as coisas dentro do carro, tomar um chocolate em um bar. No bar, fiquei com pena da atendente por causa da poluição sonora da Avenida 23 de maio. Eles não tem CIPA. Os carros faziam muito barulho. Comentei que o trânsito estava bom com o freguês do lado que me respondeu que é por causa do início das férias. Atravessei aquela velha passarela azul sobre a avenida. Tinha um camelô nas escadas. Comprei dois CDs piratas: "Cars 2" para presentear e o "O Discurso do Rei" para eu assistir não sei quando. Senti vergonha porque eu comprava cd pirata estando fardado. Atire o primeiro CD quem não tiver um pirata em casa. Vi um passageiro correndo com as malas. Vi um carro azul exposto no Saguão do aeroporto, nem sei que marca era. As montadoras gostam de colocar carros em lançamento ali. Entrei pela porta de vidro do SRPV e um sargento, segurando a porta do elevador, perguntou se eu ia subir. Respondi que não. Primeiro fui usar um telefone para fazer uma ligação para o Eng° Guilherme e perguntar sobre a reforma da torre de controle do Campo de Marte. Eu tinha certeza que o coronel iria me perguntar sobre isso. Tenente Ivon atendeu ao telefone e me disse que o Engenheiro Guilherme era namorado da Sabrina Sato. O Eng° Guilherme me disse que o forro da torre seria retirado segunda-feira. Ficamos chateados porque esse forro deveria ter sido retirado na quinta-feira. Mandei lembranças para a Sabrina Sato - Guilherme riu. Subi as escadas. A Lúcia, secretaria do coronel, me informou que a reunião foi transferida para segunda-feira. Puxa - pensei - não puseram nada no quadro de aviso. Perguntei a Lúcia se eu podia falar com o coronel, ela disse tudo bem. Para falar a verdade, foi uma das primeiras vezes que conversei com o Coronel. A sala do coronel é enorme, tem um jogo de sofá e ao fundo uma mesa. Acho que tem alguns livros ou quadros que não prestei atenção, mas a mesa em L é muito bonita.Cheguei só até a porta, pagando a continência e informando que tinha vindo à reunião e que segunda feira retornaria e comentaria com ele sobre as obras da torre de Marte, caso ele quisesse. Ele queria sim e mandou-me entrar na mesma hora. Acho que cortei a frente de alguém que esperava falar com ele, não vi. Falei dos vidros da torre, sem previsão de entrega. Ele perguntou-me se a empresa já começou as obras da infra-estrutura. Sei que a empresa desmanchou as divisórias internas. Eu peguei o celular para ligar para o engenheiro. O Coronel disse que não era necessário. Então esqueci meu celular sobre a mesa do coronel. Ele me perguntou do tenente que é fiscal da obra, que está em licença médica. Ele disse que mesmo assim o fiscal olhasse as obras da torre e que na segunda feira o informasse na reunião. Eu disse ao Coronel que, quando um fiscal fica ausente, por férias, curso ou licença médica, é nomeado um substituto, que no caso era o Eng Guilherme. O Coronel concordou. Fiquei admirado com ele, não esperava que ele ouvisse minha sugestão. Então tomei a liberdade de trazer mais um problema: Disse-lhe que um de meus soldados não pagou continência a um oficial do SRPV e que esse soldado também não tinha sido respeitoso quando chamado atenção. O oficial, corretamente, eu disse, relatou o caso através de parte. O coronel concordou imediatamente, dizendo que o soldado deveria ser punido. “Not that simple”. (Não é tão simples). Esse soldado, disse eu, está dando baixa e minha intenção é liberá-lo o mais rápido possível porque eu sei que ele tem não resiliência, tendo ficado, inclusive, em um clínica de internação um certo tempo. Resiliência é a capacidade do indivíduo de lidar com problemas, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - choque, estresse, etc. - sem entrar em surto psicológico. Embora eu concorde que uma punição verbal ficaria muito barata pelo que foi relatado, aconselhei ao Coronel a liberação imediata do soldado, ao invés de uma prisão, pensando em todos os desdobramentos de uma eventual prisão. Para minha surpresa o coronel se mostrou aberto ao meu ponto de vista novamente. Saí dali pensando na resiliência do Coronel, quanta bomba ele tem para resolver. Fui tratar de despachar documentos. Sobre esses documentos observei coisas interessantes que não vou detalhar por falta de espaço. Nesse dia também aproveitei para fazer perguntas ao pessoal que encontrei de Santos, de Guaratinguetá e de São José dos Campos. Perguntei-lhes como era o funcionamento de algumas rotinas administrativas no destacamento deles. Para minha surpresa (tive muitas surpresas nesse dia) com pouca pesquisa descobri que posso facilitar três ou quatro procedimentos que são feitos de maneira mais burocrática e demorada no Campo de Marte. O expediente acabou. Fui ao Campo de Marte "de Cinderela" para olhar a obra da torre. "Sair de cinderela" significa sair de roupa civil com o sapato da farda. (Existe também, uma outra expressão mais conhecida: "Sair de Sereia" que significa sair metade militar e metade civil. Um dia desses escutei a expressão: "Sair de homem bomba" que é sair cheio de celulares na cintura). Ao chegar à torre de controle os operadores começaram a me relatar as dificuldades que aquela obra tinha trazido com relação a alojamentos, banheiros, ruídos, visibilidade, etc. Aprendi que ao apresentar um problema, devemos apresentar uma sugestão. Da mesma forma pedi sugestões a eles. O controlador César me disse que o desembaçador da torre provisória estava inoperante, ao que acrescentei a frase: "é verdade, se funcionasse, funcionaria". Essa pérola não passou despercebida à Sargento Flávia e ao Sargento Cândido, provocando risos. Fiz a pé o trecho da torre provisória até aos banheiros e voltei, cronometrando quanto tempo eles gastam de caminhada: 8 minutos ida-volta. "Pensa numa chuva" - disseram. Pensei foi em uma capa de chuva, amarelo berrante, ridícula, que os meteorologistas usavam e que não sei onde está, mas não falei nada para não parecer simplista. Com respeito ao alojamento, chamei o Sargento Cândido para ver se aprovava uma alternativa para o alojamento que eu tinha encontrado em um Hangar do PAMA. Foi comentado que nunca viram um desenho da obra. Não sabiam onde ficaria a pequena cozinha, nem os alojamentos. Nem foram consultados sobre a futura disposição dos equipamentos. Lembrei que quando eu era operador AIS, também nunca era consultado e tinha receio de apresentar sugestões. Passei mais tempo na torre naquele dia do que imaginava. Ao chegar à secretaria, liguei para o engenheiro da empresa que faz a obra. Tive uma aula sobre fabricação de vidros, película PVB, etc. etc. Mesmo depois de uma hora de conversa eu não consegui entender quem é o culpado pelo atraso da obra. Coloquei minha assinatura 64 vezes ( sim, contei) nas escalas de serviço de quatro órgãos (que absurdo!) além de vários documentos que os soldados da secretaria preparam para eu assinar. Vi que a Infraero nos convocava para dois dias de curso integral no mês de julho. Eram cursos sobre direção de viaturas no aeroporto e segurança. Fiquei pensando: como é possível que alguém deixe seu serviço para ficar um dia inteiro, um dia inteiro, em um curso de direção? Não dava para esse curso ser mais enxuto? Observei que o prazo para eu aplicar o teste de Inglês nos controladores começaria segunda. Olhei a relação de itens de etapa para lançar também até segunda feira (exatamente no dia da reunião). Ao cumprimentar o operador da Estação de Lançamento de Balões Meteorológicos, descobri que, aparentemente, um sargento que pediu licença médica deixou de passar seu serviço completamente ao seu substituto e um certo relatório não foi feito. "Mas como ninguém me cobrou?" - pensei. Parece que ninguém no aeroporto saberia fazer esse relatório e o sargento está 90 dias em licença média. Culpei-me por não ter sido mais claro sobre esse assunto quando esse sargento foi embora. Abri meu SIGADAER (estou aprendendo a usá-lo - é um tipo de e-mail) e lembrei que não tinha respondido quatro ou cinco documentos de um Major me perguntando sobre segurança aeronáutica. Fiquei admirado de ele não ter me ligado e me chamando atenção. Nem tive como olhar. Eu também estava pensando como fazer aquele documento sobre a parte disciplinar do soldado. Não sabia como. No dia anterior tinham me passado a senha do SIGADAER de meu chefe para eu abrir. Não tive tempo de olhar. Precisava ver isso também. Lembrei que preciso ler um relatório sobre eventuais condições de risco à operação aérea por causa da obra. Não li. Meu amigo ligou, ficou admirado que eu ainda estivesse trabalhando. O expediente tinha encerrado ao meio dia, já eram 21 horas, eu estava indo embora deixando muito, muito serviço para trás, pronto para pegar mais duas horas de engarrafamento (Sexta feira, trânsito em São Paulo é bravo). Então surgiu, por uma ligação de celular, o último problema que realmente não consegui lidar: doença em família. Já me sentia em falta com os operadores, agora me sentia em falta com a família. Me achei um “workaholic”, um trabalhador compulsivo. Não viria trabalhar segunda feira cedo, iria direto à reunião à tarde, que é mesmo o início do expediente. Aí pensei nas etapas de alimentação, sem elas os operadores não recebem e que tem que ser lançadas na segunda. Pensei nas vidas humanas que se perdem em acidente aeronáutico. Pensei que os operadores não têm culpa das limitações da administração. Pensei, pela “n-ézima” vez,em pedir a reserva. Tim Maia: “Me dê motivo, para ir embora...”, No trânsito alguém me buzinou, não tanto por eu ter feito algum movimento errado, mas porque eu estava em velocidade mais baixa e falava ao celular ao dirigir. Que vergonha, lidar com a segurança de aviação e praticar uma infração tão básica. Então, parei em um posto, liguei para um colega para desabafar. Culpei-me por udo, pela minha desorganização e dos outros, por trabalhar em excesso, por ser generoso ou duro demais, por não saber expressar a necessidade de meu serviço para meus superiores, colegas e subordinados e confessei minha culpa enorme em relação à família. Já tinha passado 9 horas do término do expediente. Meus pensamentos vieram, de repente, para duas pessoas no serviço: Da. Rosana e Da. Adriana. As duas mulheres da limpeza. Naquele dia o SO Leite me dissera que as duas são a melhor equipe de limpeza que ele já viu. Elas ganham 580 reais por mês. Ambas pagam aluguel. Uma delas gasta quatro horas todo dia para vir ao trabalho. Eu e o Ten H Ricardo sempre as elogiamos, dizendo que o serviço delas é o mais importante do Campo de Marte. Em tudo procuro ouvi-las e ajudá-las. Eram mais de 22h00 e eu estava retornando para casa. É claro que há dias calmos e tranqüilos, mas lidar com problemas, superar obstáculos e resistir à pressão sem dúvida faz parte do curso da EAOF e dos dias de serviço do egressos desse curso.
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